A Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e a Sociedade Brasileira de Computação (SBC), como instituições que historicamente representam e fortalecem a comunidade técnicocientífica da Internet no Brasil, vêm a público manifestar apoio integral ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) diante da possibilidade de mudança do atual e exitoso modelo multissetorial de governança da Internet no pais, para o qual não são apontadas falhas que possam justificar tal mudança para uma agência reguladora governamental.
O CGI.br desempenha, há três décadas, um papel fundamental na consolidação de uma Internet livre, aberta, democrática e inovadora no Brasil. Por meio de seu modelo multissetorial, o Comitê garante o equilíbrio entre os diversos interesses envolvidos – governo, setor empresarial, academia, terceiro setor e comunidade técnica – promovendo a estabilidade, o desenvolvimento técnico e social da Internet em consonância com os princípios do Marco Civil da Internet e da governança democrática.
A existência do CGI.br permitiu uma série de ações que tem beneficiado e promovido o desenvolvimento da Internet no Brasil, com ampla participação da academia, sociedade civil, empresariado e governo. Dentre os exemplos destacam-se a organização do modelo de distribuição do bloco de endereços IPV4/AS e registro de DNS/DNSSEC por meio de plataforma desenvolvida no país, ainda no final do século passado. A própria criação do NIC.br, entidade sem fins lucrativos com governança multissetorial, representou uma importante âncora para a estabilidade dos serviços essenciais de funcionamento da Internet, incluindo a gestão administrativa de conflitos e disputas sobre o registro de nomes de domínio, o CERT.br para estudos, resposta e tratamento de incidentes de segurança no Brasil, o Ceptro.br e IX.br que realizam a medição da qualidade e a operação do maior ponto de troca de trafego IP nas Américas; o NTP.br e SIMET, que respectivamente sincroniza a hora legal na rede e realiza a medição da qualidade da banda larga comercializada pelos provedores de Internet no país.
A reconhecida e respeitada representação do Brasil, via CGI.br, nos fóruns de governança e discussões sobre o desenvolvimento da Internet mundial também seriam seriamente impactadas pelo consequente desmantelamento desse espaço de governança multissetorial nacional. Portanto, não se trata apenas uma simples transferência de um papel operacional de gestão de serviços da Internet no país.
Diante desse cenário, expressamos nossa preocupação com o Projeto de Lei nº 4.557/2024 e com a revogação da Norma 004/1995, que ameaçam desfigurar o atual modelo de governança, concentrando poderes na Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL).
O Projeto de Lei nº 4.557/2024 propõe transferir atribuições cruciais hoje exercidas pelo CGI.br para a Anatel, centralizando funções como o registro de domínios, a distribuição de endereços IP e a própria coordenação de políticas de Internet em um órgão regulador de telecomunicações. Além de alterar a composição multissetorial do Comitê, o projeto ignora a natureza técnica e plural da gestão da Internet, confundindo infraestrutura de telecomunicações com regulação de conteúdo e plataformas digitais. Essa sobreposição de esferas ameaça um modelo que tem garantido a estabilidade técnica e a abertura da Internet e a participação ampla de diferentes setores da sociedade em sua governança. A concentração de poderes na Agência Nacional de Telecomunicações, verticalizando o controle governamental sobre toda a cadeia produtiva do amplo setor de produtos e serviços existentes e futuros, que dependem da Internet, e sobre os quais é praticamente impossível delimitar um escopo compatível com as atribuições e responsabilidades de uma única agência reguladora extrapola em muito as atribuições constitucionais da ANATEL.
A segunda preocupação recai sobre a revogação da Norma nº 004/1995, que assegura a separação entre os serviços de telecomunicações, sob regulação da ANATEL, e os serviços de valor adicionado (SVA), como o acesso à Internet. Cabe ressaltar que a referida norma estabelece clara separação dos papéis e responsabilidades da agencia reguladora, ao manter a exclusividade na regulação da infraestrutura de telecomunicações, componente fundamental e estratégico para a existência da rede que suporta a Internet no país, separando-a da camada de aplicações para os variados tipos de serviços de valor adicionado. Essa separação, respaldada pela Lei Geral de Telecomunicações, foi decisiva para a construção de um ecossistema de Internet aberto, dinâmico e competitivo, independente das infraestruturas tradicionais de telecomunicações. A extinção dessa norma, sem debate público qualificado, compromete esse equilíbrio, podendo gerar concentração de poder regulatório, reduzir a diversidade do mercado e enfraquecer o modelo colaborativo que historicamente orienta a governança da Internet no Brasil.
Além disso, é essencial ressaltar que todos os serviços prestados pelo NIC.br citados, e outros, como os estudos e pesquisas do CETIC e o Fórum da Internet no Brasil (FIB), dependem exclusivamente dos recursos financeiros arrecadados pelo NIC.br através de delegação pelo CGI.br, oriundos das taxas cobradas para o registro de DNS e distribuição de IPs e AS no Brasil. A transferência dessas atribuições para uma agencia governamental traria impacto imediato e, possivelmente, a descontinuidade de todo esse conjunto de serviços que se comprovaram de grande importância para os negócios relacionados com o uso da Internet no Brasil, capacitação de recursos técnicos qualificados, além de um ambiente saudável para a busca de soluções para os problemas técnicos, administrativos e políticos da gestão da nossa Internet. Destacam-se como resultados reconhecidos do modelo de governança multissetorial do CGI.br a campanha promovida para redução do SPAM (gerência da porta 25), quando o Brasil era apontado como campeão mundial, e a publicação dos “Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil” em 2009, mais conhecido como o “Decálogo da Internet Brasileira”, documento basilar para a formulação do Marco Civil da Internet no Brasil.
Destacamos que a governança multissetorial é uma conquista internacionalmente reconhecida e inspiradora, sendo o CGI.br exemplo para outros países da América Latina e para a própria governança global da Internet. Medidas unilaterais que fragilizam essa estrutura resultarão em retrocessos preocupantes, como já alertaram diversas organizações nacionais e internacionais.
Assim, a RNP e a SBC reafirmam seus compromissos com uma Internet que seja desenvolvida e gerida com base em princípios de inclusão, participação social, respeito à diversidade e liberdade de expressão. Apoiamos o CGI.br e a sociedade civil na proteção de um modelo de governança colaborativo e transparente, essencial para se evitar retrocessos.
LISANDRO ZAMBENEDETTI GRANVILLE (Diretor-Geral da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa – RNP) e THAIS VASCONCELOS BATISTA (Presidente Sociedade Brasileira de Computação – SBC).