Ações de telemedicina e telessaúde mudam a realidade da saúde no Brasil

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- 29/09/2015

Sempre que precisava fazer um exame de vista, a costureira Ana do Nascimento acordava antes do sol nascer, pegava um ônibus que levava duas horas para chegar ao centro de Goiânia e passava toda a manhã em um hospital público, aguardando a sua vez de ser atendida por um oftalmologista que pudesse verificar seu grau de miopia. Chegava em casa, no cair da tarde, cansada e nem sempre satisfeita. Hoje, o “dia de fazer exame” não passa de 30 minutos. Ana só precisa ir até o posto de saúde do município de Morrinhos, onde mora, para ter atendimento. A nova realidade se deve aos benefícios da telessaúde, que oferece serviços e cuidados em saúde a distância, por meio das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e ao trabalho de profissionais que, independentemente do local onde estejam, trocam informações sobre o paciente, por vídeo ou webconferências, com o propósito de analisar o caso e chegar ao diagnóstico final. 

No Brasil, a mudança na rotina de muitos brasileiros, sejam eles pacientes ou médicos, justifica-se devido a duas iniciativas públicas na área da saúde: o Telessaúde Brasil Redes e a Rede Universitária de Telemedicina (Rute). Lançado em 2006, o primeiro é um programa do Ministério da Saúde (MS), que busca melhorar a qualidade do atendimento e da atenção básica no Sistema Único da Saúde (SUS), através das ferramentas de TIC, que oferecem condições para promover a teleassistência e a tele-educação. A ação está presente em todo o Brasil e permite a qualificação de profissionais de Saúde da Família e a troca de informações via internet entre médicos do SUS e especialistas, por meio da oferta de telediagnósticos e teleconsultorias sobre casos clínicos, processo de trabalho, educação em saúde, planejamento e monitoramento de ações em atenção primária à saúde.  

A Rute surgiu também em 2006, como uma iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), para implantar infraestrutura de comunicação em universidades públicas e seus hospitais universitários (HUs), instituições de saúde e hospitais certificados de ensino e pesquisa no país, beneficiando a criação de núcleos de Telemedicina e Telessaúde. Coordenada pela RNP, a rede fortalece e integra o Telessaúde Brasil Redes por viabilizar o intercâmbio entre profissionais de saúde e grupos de pesquisas nacionais, por meio da troca de informações, palestras, ações de educação permanente, segunda opinião formativa e teleconsulta. Também possui 55 Grupos de Interesse Especial (Special Interest Groups – SIGs) em várias especialidades da saúde, que se reúnem para a discussão de casos clínicos e troca de experiências e conhecimentos. Atualmente, a Rute é formada por 118 unidades em plena operação nas cinco regiões do Brasil e abrange mais de 150 instituições. 

Dotados de equipamentos de ponta para comunicação em tempo real, os núcleos de Telessaúde e Telemedicina são conectados à infraestrutura de alto desempenho operada pela RNP, a rede Ipê. Hoje atendem a cerca de sete mil equipes do Programa Saúde da Família, em mais de mil municípios brasileiros.

Os benefícios da Telessaúde e Telemedicina pelo Brasil

No Rio Grande do Sul, os recursos de videoconferência foram usados para ajudar as vítimas do incêndio na boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no interior do Estado, em janeiro de 2013. Foram realizadas reuniões virtuais entre o Ministério da Saúde, a Força Nacional do SUS, os hospitais brasileiros, principalmente os do Sul que atenderam os feridos, e centros de referência no treinamento de queimaduras pulmonares, como os existentes no Iraque, Miami, Toronto e San Diego, para definir estratégias para o tratamento dos pacientes. “As equipes de saúde de Santa Maria contaram com nosso apoio no tratamento psicológico às vítimas do incêndio e aos parentes, uma vez que incidentes como esses mexem muito com o lado emocional”, lembra o coordenador do núcleo de telessaúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Erno Harzheim.

No Rio de Janeiro, no núcleo de telemedicina do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), existe a parceria com o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) para a discussão, por videoconferências, de casos clínicos de lesões mais complexas de atletas durante as Olimpíadas. Em 2012, em Londres, as equipes médicas das delegações brasileiras receberam ajuda dos especialistas dos centros de cirurgias ortopédicas do Into. “Demos suporte durante os jogos olímpicos”, conta a coordenadora, Marisa Peter Silva. “Também participaremos da organização e execução de grandes eventos no Brasil”, revela. Nas Olimpíadas de 2016, o foco do trabalho também será a segunda opinião médica.

Em Goiás, são examinadas quase 500 retinografias por mês, detectando precocemente as principais causas da cegueira. Um importante trabalho na área de oftalmologia é realizado por meio do telediagnóstico. “Os pacientes vão até o posto de saúde, fazem os exames de vista necessários e aguardam o resultado. As imagens captadas são enviadas a uma central, para que o médico oftalmologista especializado faça o diagnóstico. Feito o relatório, ele envia ao profissional de saúde que atende aos pacientes no posto. Se o caso for grave, haverá como indicação de conduta a visita a um oftalmologista. Do contrário, constará apenas indicação de tratamento”, explica o coordenador do núcleo de telessaúde e telemedicina da Universidade Federal de Goiás (UFG), Alexandre Taleb.

No Amazonas, a implantação do Programa Nacional de Telessaúde e os núcleos de telessaúde e telemedicina da Rute estreitaram as barreiras de acesso geográfico e a falta de profissionais para assistência à saúde no estado, sobretudo no interior, em áreas de população ribeirinha e comunidade indígena. A telecomunicação é feita por antenas de radiofrequência espalhadas pelas unidades básicas de saúde distribuídas pelo território amazonense, que integram os profissionais de saúde locais ao núcleo central da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). O trabalho de saúde indígena se destaca entre as ações de telessaúde na região amazônica. “Nossa população indígena talvez seja a maior do Brasil. Além de nos aproximar, tivemos que conhecer a realidade em que vivem”, conta o coordenador do polo de telemedicina da Amazônia e atual reitor da UEA, Cleinaldo Costa.

No Amazonas, há dois polos de telessaúde em áreas indígenas brasileiras, um localizado no distrito de Iauaretê, no município de São Gabriel da Cachoeira, no extremo noroeste do Estado, e outro em Umirituba, no município de Barreirinha, a 372 km de Manaus, ou 6h de viagem - 4h30 de voadeira, embarcação de pequeno porte usada pela população ribeirinha, para chegar até Parintins, e 1h30 de avião de Parintins até Manaus. Atualmente, cerca de cinco mil índios são atendidos por profissionais de saúde em Umirituba. Em área indígena, a maioria dos tele-atendimentos está associada a doenças dermatológicas e enfermidades causadas pelo alcoolismo, como cirrose hepática, diabetes e hipertensão arterial.

“Além das comunidades indígenas, com a infraestrutura da telessaúde, em cinco anos, tivemos a oportunidade de atender a mais de 75 mil pessoas. É um número considerável até porque as pessoas teriam que recorrer ao SUS em Manaus, com um custo muito alto de deslocamento e, muitas vezes, por via aérea”, explica Cleinaldo.

Em Minas Gerais, o atendimento por telessaúde é feito a 710 municípios (83% do Estado), correspondentes a quase mil pontos de atendimento, beneficiando mais de 1.900 equipes de Saúde da Família. Cerca de 60 mil teleconsultorias já foram realizadas e, na área de telecardiologia, o Estado bateu o recorde de mais de 2 milhões de eletrocardiogramas analisados a distância. O Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) coordena a Rede de Teleassistência de Minas Gerais (RTMG), uma parceria de seis universidades públicas mineiras que vem a ser um exemplo de serviço de telessaúde sustentável e de grande porte. Hoje cerca de 2 mil eletrocardiogramas são analisados por dia. E o paciente não precisa ter gastos com transporte, alimentação e hospedagem, se for preciso. A coordenadora do núcleo de telesssaúde do Hospital das Clínicas da UFMG, Beatriz Alckmin, ressalta os benefícios da tecnologia. “Em média, 80% dos atendimentos por telessaúde evitam o encaminhamento de pacientes, o que gerou uma economia para o sistema público de saúde de cerca de R$ 80 milhões em oito anos de operação, comprovando a viabilidade econômica da prática”.

Outro destaque na área de telecardiologia é a participação do serviço na Rede de Cuidado ao Infarto Agudo do Miocardio (IAM) em Belo Horizonte. Os resultados alcançados permitiram a elaboração do projeto Minas Telecardio 2, que está implantando a Rede de Cuidados ao IAM no Norte do Estado, com instalação de eletrocardiogramas nas ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e em hospitais regionais para melhorar o atendimento de pacientes com suspeita de IAM em áreas remotas e isoladas.

Em Pernambuco, o núcleo de telessaúde da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) disponibiliza serviços de tele-educação, tele-assistência e telegestão. Segundo a coordenadora, Magdala Novaes, há grande atuação também na área de pesquisa e desenvolvimento. “É uma das áreas mais fortes, pois desenvolvemos tecnologias e avaliamos seu impacto na melhoria da qualidade da assistência à saúde da população, ao mesmo tempo em que contribuímos para formação de recursos humanos especializados em saúde digital”, diz. Outro ponto forte é o trabalho realizado na área da política de sangue. O núcleo desenvolveu e implementou a Rede Rhemo, de colaboração virtual por videoconferência para os serviços de hemoterapia e hematologia no país, em parceria com a Coordenação Geral do Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde. Foram implantadas 31 salas de videoconferência em todos os hemocentros coordenadores do Brasil.

“O objetivo dessa rede é contribuir para aumentar a eficiência dos processos de gestão, troca de experiências, apoio à pesquisa e formação de redes de conhecimento entre os serviços da hemorrede brasileira, e sua integração com as demais redes de telessaúde do país, tais como a Rute e o Telessaúde Brasil Redes. Por meio de videoconferências, reuniões clínicas e de gestão, cursos e seminários ocorrem de norte a sul do país, permitindo o aprimoramento de técnicas de diagnóstico e a atualização profissional permanente em todos os Hemocentros Coordenadores do país”, explica Magdala.

Segundo a coordenadora Nacional do Telessaúde Brasil Redes, Tâmara Guedes, o programa vem ganhando visibilidade. “Ele está se tornando foco de interesse da gestão a partir das evidências apresentadas, tornando-se uma ferramenta importante de regulação. O Telessaúde atua na redução de encaminhamentos para especialidades, reduzindo filas de espera por atendimento e custos para a gestão”.

Esses resultados foram verificados em estudos focais realizados pelos núcleos do Estado de Minas Gerais e pelo do Estado do Rio Grande do Sul, que mostram que a tele-consultoria é capaz de evitar, em aproximadamente 70% dos casos, a necessidade de remoção de pacientes, já que esses são resolvidos nas próprias Unidades de Saúde da Família. Uma pesquisa de satisfação com as equipes que utilizam o serviço atestou ainda que 67% dos profissionais acreditam que a telessaúde contribuiu muito para romper a sensação de isolamento e para sua decisão de permanecer em localidades remotas.

“É notório o crescimento do Telessaúde desde sua criação em 2006. Desde a quantidade de pontos implantados, crescimento na utilização de serviços até sua complexa rede de núcleos. Os resultados alcançados com a implantação do programa e da Rute demonstram um avanço significativo nos processos de qualificação dos profissionais de saúde, especialmente daqueles que atuam nos municípios de difícil acesso”, conclui Tâmara.